AGROSOFT 97
I Congresso da SBI-Agro

 

Aspectos Econômicos da Coordenação da Cadeia 
Produtiva do Leite e seus Derivados

 

Paulo do Carmo Martins
cnpgl@cnpgl.embrapa.br
Embrapa-Gado de Leite
Rua Eugênio do Nascimento, 610, bairro Dom Bosco, Juiz de Fora, Minas gerais, Brasil
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Resumo

O leite foi o primeiro produto da agropecuária brasileira a passar por um processo de transformação industrial, para ser consumido. Está sendo também o último produto a se transformar em agronegócio. As intensas transformações ocorridas nos últimos seis anos na cadeia produtiva demonstram que ocorre um rápido processo de organização, apesar de existirem graves indicadores de ineficiência na produção, industrialização e comercialização.

Abstract

Milk was the first farm commodity in Brazil to be industrially processed for the food consumer market. Currently, it is the last farm product becoming a agribusiness. The intense transformations in the production chain in the past six years have demonstrated that a rapid process of organization is taking place, despite existing indicators for inefficiency in the farm producing operations and processing, storage and distribution of milk for consumption.

Palavras Chaves

Cadeias produtivas, leite e derivados, economia leiteira, agronegócio

 

1. INTRODUÇÃO

O processo de inserção da sociedade brasileira no bloco da economia capitalista ocorreu de chofre, com transformações estruturais já consolidadas ou em fase adiantada de consolidação. Nos últimos cinqüenta anos, a economia brasileira deixou de ser agromercantil para ser agro-industrial, capitalista financeira e, mais recentemente, finca sólidas bases para esta nova etapa do capitalismo mundial: globalização com livre comercio regional. Em outras palavras, exemplo clássico de capitalismo tardio, percorreu todas as etapas deste sistema econômico em meio século, enquanto EUA e Europa despenderam cerca de dois séculos. Promoveram estas transformações, portanto, de maneira mais suave e menos traumática.

A condução de todo o processo de industrialização ficou a cargo do Estado, que optou pela planificação centralizada da economia e, segundo ABREU (1992), obteve históricas taxas de crescimento, principalmente entre os anos 1968-73, consagrado na literatura como o chamado período do "milagre econômico".

Com a falência do modelo econômico no início dos anos 80, contudo, o Brasil inicia um processo de estagflação, resultando em abertura política, consolidado formalmente na Constituição de 1988, de acordo com CARNEIRO & MODIANO (1992) e SERRA (1989). Ou seja, o Estado Brasileiro perde sua capacidade de intervenção e de estimulador do desenvolvimento, deixando de regulamentar as relações produtivas gradativamente. Ao mesmo tempo, após duas décadas de direitos cívicos restritos, a sociedade inicia consistente apresentação de demandas quantitativas e qualitativas, em escala exponencial, com reflexos diretos na vida econômica.

Quanto ao setor agrícola, há um consenso entre os estudiosos, com destaque para CASTRO (1975), de que foram cumpridos os papeis que se espera deste setor no processo de desenvolvimento econômico, sistematizados por JOHNSTON & MELLOR (1961). A agricultura gerou matéria-prima e alimentos a preços baixos, mão de obra, recursos financeiros, divisas, abriu mercado para produtos originários do setor urbano industrial e, de acordo com ACCARINI (1987), ainda cumpriu papel de gerar energia alternativa ao petróleo. Mais do que isso, cadeias agroalimentares foram organizadas de maneira eficiente e competitiva, caracterizando-se no agronegócio, que representa cerca de 40 % da renda nacional e o melhor mecanismo de inserção do Brasil na economia globalizada.

Esta constatação, todavia, não se deu de maneira generalizada. O setor leiteiro brasileiro por exemplo, somente nos meados da presente década, passa a dar sinais claros de um início de sistematização da cadeia produtiva, com ações efetivas dos agentes participantes, no sentido de se caracterizar como agronegócio. É nesta perspectiva que se coloca o presente trabalho, que objetiva analisar as transformações recentes na cadeia produtiva de leite e seus derivados, bem como seus reflexos e perspectivas na produção, industrialização e comercialização.

 

2. BREVE HISTÓRICO SOBRE A CADEIA PRODUTIVA

A pecuária é uma das atividades mais tradicionais no Brasil. Ainda no período das entradas e bandeiras, o bovino era garantia de transporte de carga e proteína viva para os bandeirantes. Iniciada a colonização, cumpria também a função de força de trabalho agrícola na terra incorporada à atividade produtiva. A partir de 1945, antes portanto do início da industrialização brasileira, tem-se o princípio da formação da cadeia produtiva. Por determinação de Lei Federal, o leite somente poderia ser consumido no Brasil após passar por tratamento industrial que assegurasse ao consumidor a isenção de impurezas e de organismos patogênicos. Apesar desta determinação, ainda hoje algumas regiões do país apresentam cerca de 50 % do leite consumido sem nenhum processo de inspeção. Mas é inegável que, já na década de 40, iniciou-se o processo de formação da primeira agroindústria brasileira, apesar deste conceito ser acertadamente aplicável no início da década de 70, quando agricultura comercial e indústria de alimentos se juntam sob a ótica de produção capitalista, como é o caso do milho e da soja.

A política de alimento barato, adotada no Brasil principalmente no pós-guerra, encontrou no leite um de seus principais mecanismos de sustentação. Produto tipicamente de mercado interno, segundo MARTINS & CASTRO (1986), somente o leite e seus derivados pesam cerca de 2 % no cálculo do índice do custo de vida, instrumento usado até recentemente para o reajustes de salários em uma economia indexada. Este fato contribuiu para que toda a cadeia fosse regulamentada pelo Estado, que estabelecia política de preços para cada segmento e, de maneira heterodoxa, utilizava-se do produto para o combate à inflação. É por causa do tabelamento, que vigorou até 1991, de acordo com CAMPOS FILHO (1995), que a pecuária leiteira mostrou-se durante quase quatro décadas, ser uma atividade econômica não atrativa.

Após 1991, o Estado passa a não mais estabelecer o preço do produto entre os segmentos que compõem a cadeia e transformações significativas têm início em velocidade até então inimaginável. A partir da implantação do Plano Real, o crescimento da produção que era vegetativo, apresenta uma variação positiva de aproximadamente 29 % em três anos, conforme tabela 01.

Tabela 01. Evolução da produção de leite nos anos 90, em bilhões de litros. Brasil.

Ano Produção
1990 14,5
1991 15,1
1992 15,8
1993 15,6
1994 15,8
1995 17,7
1996 19,0
1997 20,4*

Fonte: BERNARDES & NOGUEIRA NETTO (1997)

* estimativa

 

A saída do governo do cenário leiteiro estabelece, no primeiro momento, uma turbulência conflituosa, motivada por interesses diferenciados entre, principalmente produtores e indústria, objetivando se estabelecer margens atrativas para cada uma das atividades específicas. Passados estes momentos, o que se percebe é uma competição clara no sentido de redução de custos e de ineficiência, bem como a busca de melhoria de qualidade e diversificação de produtos derivados ofertados. Para FARINA (1995), existe uma competição entre rivais e ao longo da cadeia produtiva. Ao contrário da época de tabelamento, a cadeia se organiza via preço de mercado ao consumidor para trás, e não do custo de produção para frente. Existe uma busca de eficiência que ultrapassa o nível da fazenda e chega até ao varejo, com investimentos sendo realizados em toda a cadeia produtiva.

 

3. O SETOR DE PRODUÇÃO

Dados levantados por GOMES (1996) demonstram que cerca de 1,8 milhões, ou um terço das propriedades brasileiras dedicam-se à pecuária leiteira. Isto corresponde a cerca de pelo menos 2,7 milhões de empregos diretos gerados somente na atividade de produção, o que equivale a 22,5 vezes a todos os empregos diretos gerados pela industria automobilística nacional.

Apesar desta importância, a atividade é ainda pouco eficiente, apresentando indicadores de produtividade bem distante do que é possível com a tecnologia disponível no Brasil ou do que se verifica nos países vizinhos. Somente como exemplo, CAMPOS FILHO (1995) afirma que a produção diária por propriedade na Argentina está em 550 litros, enquanto no Uruguai é de 450 litros. No Brasil, a média dos produtores da paulista é de 100 litros, da Vigor 80 litros, da Nestlé 75 litros e da Parmalat 40 litros.

Neste momento ocorre uma grande modificação do mapa de produção. As bacias tradicionais, localizadas principalmente na região sudeste, vem apresentado crescimentos inexpressivos de produção e redução relativa em termos de participação na produção nacional. BORTOLETO et alii (1997) demonstram que entre 1972 e 1993 a participação da região sudeste caiu de 53,7 % para 47,1 %, enquanto o Centro-Oeste praticamente duplicou sua participação, saindo de 7,8 % para 13,9 %. Vale lembrar que o grande incremento está ocorrendo após 1993 e, sob este aspecto, o Estado de Goiás vem se destacando no cenário nacional. A Revista Balde Branco, especializada nesta atividade, na edição de junho deste ano, traz uma entrevista com o Secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, onde este admite que este ano aquele Estado deverá perder para Goiás o segundo lugar no "ranking" nacional de produção de leite.

Quanto ao imenso número de propriedades que se dedicam a atividade leiteira, está se tornando consenso entre os estudiosos a idéia de que nos próximos anos haverá uma drástica redução das chamadas estâncias leiteiras. Baseiam-se na experiência americana e argentina, onde o número de propriedades leiteiras caiu abruptamente a partir do processo de profissionalização da atividade ditado pelo mercado, quando este produto se inseriu no conceito de agronegócio.

 

4. A INDÚSTRIA LATICINISTA

Desde o início da década de 70, a indústria laticinista está em rápida transformação no Brasil, caracterizada por oligopolização, ampliação de mercado e sofisticação e diversificação dos produtos oferecidos. Formada por cooperativas, empresas nacionais e transnacionais, estas últimas têm apresentado tendência constante de aumentar a sua participação no mercado brasileiro. A entrada no mercado da Parmalat, no início desta década, tem obrigado aos agentes participantes do setor a investimentos vultosos em marketing, o que não era tão expressivo até então. Isto tem reduzido o poder de competição dos laticínios brasileiros, na medida em que dispõem de poucos recursos para esta atividade. As cooperativas, que cumprem um papel fundamental para os produtores com pequena produção, também enfrentam a mesma realidade defrontada pelos laticínios nacionais, acrescido do fato de que, dada às suas características próprias, têm dificuldades de tomarem e implementarem decisões administrativas necessárias sob a ótica eminentemente comercial, ditadas pela elevada competição.

A abertura econômica tem possibilitado ao consumidor acesso a produtos lácteos de diferentes partes do mundo, a preços e qualidade atrativos. Isto tem exigido da indústria um comportamento até então não existente com muita ênfase. O dado novo é que cooperativas e empresas têm demonstrado intensa preocupação quanto à melhoria do leite obtido nas propriedades, bem como a melhoria na forma em que a matéria-prima é transportada até a planta industrial, ao mesmo tempo em que buscam otimizar todo o processo de industrialização e comercialização.

Sob este aspecto, a falência do modelo de assistência técnica oficial no Brasil tem levado a indústria laticinista a investir substancialmente na formação de quadros técnicos, que são treinados permanentemente na atividade e prestam acompanhamento aos proprietários fornecedores de matéria-prima. Como o leite é um produto que reage bem à escala, palestras de sensibilização quanto à necessidade de profissionalização vem acontecendo continuamente. Por outro lado, dada a crônica descapitalização dos produtores, motivada pelo tabelamento de preços até então existente, bem como a dificuldade e risco de obtenção de recursos para investimentos, é cada vez maior o número de produtores que tem recebido apoio para investimentos em matrizes, tanques de resfriamentos e outros, para posterior amortização em litros de leite.

 

5. A COMERCIALIZAÇÃO

O leite e derivados respondem bem à elevação de renda. Com o Plano Real inegavelmente ocorreu crescimento de renda, principalmente das faixas da população que participam do menor extrato de renda da sociedade brasileira. Parece natural, portanto, que também tenha ocorrido uma elevação no consumo do produto. Mesmo tendo aumentado substancialmente a produção, conforme tabela 01, o Brasil foi obrigado a lançar mão de importações e, de acordo com BERNARDES & NOGUEIRA NETTO (1997), somente no período 1995-96, foram importados 717 mil toneladas, o que equivale a U.S.$ 1,2 bilhões, configurando-se na maior importação de produtos lácteos da história do país.

Até recentemente, o principal canal de comercialização de leite e derivados eram as padarias. Estas ficavam com cerca de 5 % do preço pago pelo consumidor. Além disso, a indústria laticinista cedia o refrigerador e arcava com os custos dos sacos de um litro que não eram comercializados ou furavam. A redução do tamanho das famílias, a crescente adoção de hábitos da chamada vida moderna e a introdução do leite conhecido como longa vida no mercado, vem mudando substancialmente os hábitos de consumo. O produto passa a não ser adquirido diariamente. Por outro lado, dada a crescente importância dos supermercados no abastecimento alimentar, que atuam de maneira mais profissional e giram o estoque com muito mais rapidez, tem deslocado a padaria de sua posição central. Vale o registro de que o mercado de leite longa vida no Brasil cresce a uma taxa de 50 % ao semestre, sendo já o segundo do mundo.

 

6. PERSPECTIVA PARA OS PRÓXIMOS ANOS

O leite foi o primeiro produto da agropecuária brasileira a, por força de lei, passar por um processo de industrialização, antes de ser consumido. Mas também está sendo último a se configurar como agronegócio. As transformações em curso, portanto, não tendem a ser passageiras. O deslocamento das bacias leiteiras para os cerrados, onde o custo de produção é bem menor, a profissionalização da atividade, a busca incessante da indústria pela otimização de todas as suas rotinas e, acima de tudo, o crescimento do sentimento de cidadania que faz do consumidor-cliente o agente motor de mudanças permanentes, tudo isso abre uma perspectiva nova para todos os profissionais que trabalham com inovação e prestação de serviços. O próprio nível de participação competitiva da cadeia produtiva com as de outros mercados como Mercosul, União Européia, Estados Unidos e Oceania, dependerá do nível de interação dos agentes descritos com estes profissionais, muitos ainda não sensibilizados.

 

7. REFERÊNCIAS

  • Abreu, M.P. (1992) A retomada do crescimento e as distorções do "milagre", in A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, campus, Rio de Janeiro, 233-94.
  • Accarini, J.H. (1987) Economia rural e desenvolvimento: reflexões sobre o caso brasileiro, vozes, Petrópolis.
  • Bernardes, P.R. e Nogueira Netto, V. (1997) Análise da conjuntura, perspectiva e estratégias para a pecuária leiteira, confederação nacional da agricultura
  • Bortoleto E. E. et alii (1997) Repensando a agricultura paulista: cadeia produtiva do leite, secretaria de agricultura e abastecimento do estado de São Paulo.
  • Campos Filho, J.P. (1995), Minas Gerais, Seminário: as cooperativas e a produção de leite ano 2000, Organização das cooperativas do estado de minas gerais.
  • Carneiro, D.D. e Modiano, E. M. (1992) Crise e esperança, A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, campus, Rio de Janeiro, 295-323.
  • Castro, B. (1975) Sete ensaios sobre a economia brasileira, forense universitária, Rio de Janeiro.
  • Farina, E. M. M. Q. (1995) Cadeia de produção e negociação de preços, seminário: as cooperativas e a produção de leite ano 2000, Organização das cooperativas do estado de minas gerais.
  • Gomes, S. T. (1996) A economia do leite. Embrapa-CNPGL. Coronel Pacheco-MG.
  • Johnston, B. e Mellor, J. W. (1961) The role of agriculture in economic development, american economic review 51:566-93
  • Martins, P. do C. e Castro. F. G. (1986) Relações de troca na pecuária leiteira, congresso da sociedade brasileiro de economia e sociologia rural XXIV, Anais, Lavras.
  • Serra, J. (1989) a constituição e o gasto público, planejamento e políticas públicas, IPEA, Brasília.

 

8. BIOGRAFIA

Paulo do Carmo Martins

Nasceu em 1962, graduou-se em economia, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em 1983 e concluiu mestrado em economia rural na Universidade Federal de Viçosa em 1987, especializando-se em política agrícola voltada para o setor de leite e de derivados. Entre 1986 e 1987, como pesquisador da Empresa de Pesquisa Agrícola do estado de Minas Gerais, cedido ao Centro Nacional de Pesquisa de Gado de Leite, desenvolveu trabalhos na área de economia leiteira, tendo sido um dos autores da planilha do custo de produção de leite, que serviu como parâmetro para reajuste do preço de leite até 1991. Foi Secretario Municipal de Agropecuária e Abastecimento de Juiz de Fora entre 1993-95 e de Governo em 1996. É atualmente coordenador da Área de Difusão e Transferência de Tecnologias da Embrapa Gado de Leite e professor de Economia Agrícola e Economia Internacional para os cursos de graduação em economia e administração da UFJF.